Palavra de Deus em palavras humanas

Palavra de Deus em palavras humanas

POSTADO EM 16 de Setembro de 2016

Por Pe. Francisco Gilson*

    O título desta pequena reflexão é muito conhecido e afirmado entre biblistas. Com essas palavras, o doutor em Ciências Bíblicas, Pe. Cassio Murilo Dias da Silva, começa a introduzir os leitores em seu livro Metodologia de Exegese Bíblica. Mas não é sobre o biblista ou seu livro que queremos discorrer, muito menos ainda sobre a os métodos de exegese. Não é um artigo científico, mas apenas uma ponderação.

    A Bíblia Sagrada narra o modo como Deus se revelou na história da humanidade e como o povo foi “constituído” Povo da Aliança. Noutras palavras: como o povo bíblico chegou ao conhecimento de que existe um Deus, como Ele se revelou e como o esse povo percebeu essa presença reveladora na história da humanidade (economia da Salvação). A Escritura não tem a pretensão de narrar os fatos com todas as minúcias com que aconteceram e critérios epistemológicos (saber científico) da historiográfica; não é esse o objetivo, sobretudo porque os Livros Sagrados foram escritos muito tempo depois dos acontecimentos neles apresentados, como o Livro dos Gênesis (ou Livro das Origens), por exemplo, que foi escrito no contexto do Exílio da Babilônia (sec. VI, a.C); revela, sobretudo, a experiência de Deus na vida de um povo que respondeu à Sua voz: “Iahweh disse a Abrão [...]. Abrão partiu como lhe disse Iahweh” (Gn 12,1.4).

    Literatura: assim a Bíblia é compreendida. O problema aparece quando compreendemos, com certo senso comum, que literatura se resume a contos alegóricos, sagas, lendas, romances e novelas; isso não é literatura: são gêneros literários. Literatura é a arte da escrita, escrever com acertada estética, extraindo das palavras seus belos, ricos, múltiplos e profundos significados. Por isso, ao longo dos séculos, são amplas as interpretações que surgem a partir de um mesmo fragmento bíblico; e, como é múltipla a ação do Espírito Santo, não podemos dizer outra coisa senão que estas múltiplas interpretações, em verdade, são uma riqueza, pois só se pode compreender em verdade se for por Sua ação. Parafraseando Santo Agostinho, no Livro VII das Confissões, poderíamos dizer que aí está a beleza da Sagrada Escritura: tão antiga e tão nova. Antiga, porque nos transmite a fé; nova porque nos revigora diariamente. E, como falamos do Espírito Santo, compreendemos que somente por Sua ação é possível haurir da Sagrada Escritura autêntica interpretação. A lógica é simples: aquele que inspirou a escrever inspira a interpretar.

    Palavra de Deus em Palavras humanas. Da parte de Deus a inspiração para relatar seus desígnios amorosos; da parte humana a redação. Cabe ressaltar que inspiração não é ditado. O Dicionário do Concílio Vaticano II diz que a inspiração é “[...] iluminação da inteligência dos hagiógrafos [autores sagrados], a fim de que cada um deles, com a própria vida e com os elementos culturais presentes na história de seu povo e dos povos circunvizinhos, pudesse perceber, conceber, refletir e transmitir, fielmente, a verdade dos fatos e das palavras dos mediadores, que falaram inspirados por Deus. [...]”. Por sua vez, o Novo Dicionário da Língua Portuguesa Silveira Bueno afirma que ditado é “aquilo que se dita para alguém escrever”. A diferença é clara, mas é sempre bom ressaltar: no primeiro, a liberdade de expressão, que apresenta participação, interação; no segundo, apenas a compilação. 

    O hino Plano Divino da Salvação, na carta aos Efésios (1,3-14), escrita por volta do ano 58, depois de Cristo, nos leva a compreender que a natureza e objeto da revelação é o próprio Deus. “Bendito seja o Deu e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”; “nele nos escolheu antes da fundação do mundo”; “fostes selados pelo Espírito da promessa, o Espírito Santo”: essas expressões carregam consigo não somente beleza, mas imensa riqueza espiritual; levamnos a compreender o Pai (origem reveladora), por meio de seu Filho Jesus Cristo (objeto da revelação), mediante a ação do Espírito Santo (que, manifestando o amor, dá-nos conhecer o mistério do amor da Trindade e coroa a execução dos desígnios divinos). Quão bela é a Palavra que o Senhor nos dirige, isso porque toda a Sagrada Escritura está permeada de misericórdia; o plano de Deus para a sua criação (ser humano e natureza) não é outro senão a salvação (cf. Ef 1,9-10; Ap 22,3); e é isso que se apresenta nas Letras Sagradas: plano esse que culmina na Pessoa de Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus, plenitude da misericórdia do Pai para nós (cf. Gl 4,4-5; Jo 1,1.14.16).

    Dissemos, logo na primeira frase, que seria uma reflexão breve e já nos estendemos o suficiente. Isso revela ainda mais um dado: quem precisa de “palavras escritas” para se comunicar é o ser humano, não Deus; Ele se comunica no amor, nós na tentativa, por vezes falhas, de amar. E se precisamos de palavras para nos expressar, Deus na sua imensa bondade nos concedeu as Sagradas Escrituras. Que, pela força da Palavra, nossos passos não se afastem do caminho que leva ao Pai. 

“Meu coração diz a teu respeito: ‘Procura sua face!’ É tua face, Iahweh, que eu procuro, não me escondais de tua face. (Sl 27,8-9)   

* Pe. Francisco Gilson de Souza Lima, Diocese de Bragança Paulista, Pároco da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, Atibaia-SP; Vigário Regional da Região Pastoral Atibaia. 14/09/2016Image title

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