Desfrutar a vida como dom divino

Desfrutar a vida como dom divino

POSTADO EM 10 de Outubro de 2018

Por Padre José Antonio Boareto

O sábio do livro de Eclesiastes quer nos ajudar a refletir acerca da vaidade. Lemos no capítulo 1 versículo 2: "Vaidade das vaidades, diz Qohélet, vaidade das vaidades, tudo é vaidade". Vaidade traduz um termo hebraico que significa "sopro, hálito e fumaça".
No capítulo 1 versículo 3 está a pergunta fundamental que faz Qohélet ao seu leitor: "Que proveito tira o homem de todos os trabalhos com que se afadiga sob o sol?" Que pode ser entendida a partir de outra pergunta: Para que trabalhar e progredir na vida? A resposta é negativa pois a natureza esta sempre recomeçando num movimento de tédio e indiferença.
Todas as coisas são cansativas e enfadonhas devida a monotonia.
O autor vai demonstrando durante todo o texto que todo esforço tem sua consequência e como o ser humano busca viver um absurdo aqui então não reconhece a condição trágica da própria vida. Semelhante reflexão faz Albert Camus em sua obra "O mito de Sísifo" o qual reintrepreta o mito considerando a lógica do trabalho moderno em que o ser humano vive para trabalhar nas empresas e escritórios e numa perspectiva de permanente evolução e desenvolvimento ou ainda progresso mas que se trata é de um regresso e mesmo involução humana.
No mito de Sísifo o castigo que ele recebeu foi o de ter que carregar uma pedra até o alto da montanha, quando ele chega até o topo ela rola montanha abaixo e ele precisa recomeçar novamente. Assim é o ser humano nessa sociedade que está marcada por uma ótica de compreensão que o ser humano seja considerado a partir do que tem economicamente e sua capacidade de produção enquanto reconhecimento da sua utilidade.
Novamente a pergunta do Qohélet deve nos fazer questionar: Para que trabalhar e progredir na vida? Albert Camus ao falar desse absurdo que vive o ser humano na modernidade, afirma que o ser humano moderno tem medo da morte, não acredita na eternidade e não necessita de Deus. Uma vez que ele não tem uma compreensão do próprio sentido da vida que se inscreve na realização do plano amoroso de Deus para nós, então ele só tem a ele mesmo e seu desejo de viver absurdamente aqui.
Camus fala que em alguns momentos o ser humano se torna consciente dessa condição absurda que esta vivendo e então o trágico revela ele a ele mesmo e percebe que está como que "eternamente preso" neste carregar essa pedra que é a vida moderna.
É possível escapar dessa condição absurda ou mesmo ser mais consciente e assumir o trágico enquanto possibilidade de um outro modo de existir humanamente? Qohélet ao afirmar que vaidade das vaidades tudo é vaidade está justamente apontando para essa realidade trágica do ser humano, como ele mesmo explica no capítulo 1 versículo 14: "Vi todas as obras que se fazem sob o sol: pois bem, é tudo vaidade e perseguir o vento". Neste versículo o autor está fazendo uma autocrítica, ele está reconhecendo o vazio das suas experiências e assim demonstrando que fracassou nas tentativas de encontrar a felicidade. Almejar a felicidade considerando apenas o sucesso é buscar fazer da vida um perseguir o vento. E então como compreender o sentido da vida? Como viver debaixo do sol? Como fugir dessa condição absurda de viver para trabalhar?
Ensina o Qohélet:
"Que proveito tira o operário do trabalho que faz? Vejo a ocupação que Deus deu aos filhos de Adão, para se ocuparem. Ele faz tudo belo a seu tempo, e dá ao coração humano até o sentido do tempo, sem que o homem possa descobrir a obra que Deus faz do começo ao fim". (Ecl 3,9-11). Cabe a cada um de nós reconhecer a presença de Deus que faz tudo belo a seu tempo, isto é, embora cada um de nós atue sobre o tempo através das escolhas que fazemos, só Deus é quem pode dar ao ser humano o sentido do tempo, isto é, o conhecimento sobre o significado do viver humanamente.
Deus dá ao coração humano a graça de reconhecer que Ele continua a criar e assim ensina-nos que Ele trabalha em nós mais em nós do que nós em nós mesmos, por isso o ser humano não descobre a obra que Deus faz do começo ao fim. O ser humano simplesmente sabe que Deus está criando mas não sabe como e Nele confia.
Entretanto, Qohélet sabe que a vida é um dom de Deus que deve ser gozada. Essa condição de saber que a única coisa que faz sentido na vida é goza-la como dom divino é assim expresso no texto bíblico: "Sei que não há nada melhor para o homem que alegrar-se e fazer o que é bom na vida. E também, que todo homem que come e bebe e prova de felicidade em seu trabalho, também isso é dom de Deus" (Ecl 3, 12-12).
Desfrutar a vida como dom divino é a felicidade que não se espera alcançar mas que se vive permanente pois o sábio que vive da fé reconhece que tudo provém de Deus e também sua vida. Semelhante compreensão lemos em Santo Irineu ao afirmar que "A glória de Deus é o homem vivo". A vida é dom de Deus por isso viver é tornar-se um louvor vivo pela criação.
Esse desfrute da vida como dom de Deus e felicidade humana é assim descrito no Eclesiastes:
"Vai, come teu pão com alegria e bebe teu vinho com bom coração, pois Deus já se agradou de tuas obras. Sejam sempre brancas tuas vestes e não falte perfume em tua fronte! Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vã existência, porque é Deus quem te dá, sob o sol, todos os teus dias vãos. Pois esta é a parte que te cabe na vida, e no trabalho com o qual te afadigas sob o sol". (Ecl 8, 7-9).
Em outras palavras, comer, beber, gozar a vida com quem ama isso é o que pode o ser humano saborear como dom de Deus pois tudo mais é vaidade e perseguir o vento. O trabalho pode ser um modo de desfrute uma vez que ele esteja orientado para essa vida prazerosa que se experimenta junto com quem se ama.
A vida humana se realiza na experiência comunitária e no ser família. Neste sentido, é preciso se perguntar sobre como temos desfrutado a vida com quem a gente ama, como nossa vida é dom de Deus? Que cada um faça uma avaliação do próprio estilo de vida e ideais aos quais tem aspirado e perceba se não está perseguindo apenas o vento?
Que momentos tempos proporcionado para comer, beber, gozar a vida com a gente ama? Como tenho eu cuidado de mim, no texto descrito como vestes brancas e perfume na cabeça que representam o agir na justiça e ter a cabeça aberta para a sabedoria que é entendida como o sabor que se saboreia no desfrute da própria vida?
Segundo o Qohélet essa é a parte que te cabe pois tudo mais é viver todo dia sua vã existência. A preocupação com o poder e as riquezas é vaidade, isto é, sopro, vento e fumaça. Enfim qualquer preocupação é vaidade. Que outra prioridade seria mais fundamental que desfrutar a vida como dom divino junto com quem a gente ama?
Que possamos refletir acerca do nosso estilo de vida e ou que almejamos buscar e a partir da sabedoria do Qohélet reconhecer o que é a parte que nos cabe e desfrutar a vida. Para Albert Camus esta postura reflexiva onde o ser humano questiona o seu modo de vida e que o leva a uma nova atitude é a revolta existencial. Essa rebeldia é necessária para que não percamos a compreensão fundamental do que seja viver humanamente.
Horácio (65 a.C - 8 a.C.) em um dos seus poemas usou a frase "carpe diem" que significa colha o dia. Embora o termo tenha uma conotação positiva ela foi cunhada em caráter negativo. Era uma chamada de atenção ao Império Romano quando do tempo das guerras e que significava "cada um por si" devido ao Império estar se desfazendo e irem assistindo sua destruição.
O mesmo pode se aplicar a nós, diante da vida absurda que vivemos, e diante do trágico que se apresenta a nós, como o de reconhecer que tudo é vaidade e perseguir o vento, faz-se necessário "carpe diem" colher o dia de hoje como dom de Deus que realiza sua obra no tempo e que dá ao ser humano a graça de desfrutar a vida alegrando-se e fazendo o que é bom.
Vivamos o melhor de nossas vidas a cada dia pois "tempus fugit" (o tempo passa) procurando comer, beber, gozar a vida com quem a gente ama e provar da felicidade do trabalho para isto e assim estaremos realizando a parte que nos cabe. E assim vivendo iremos desfrutando a vida até o momento de se completar em nós a obra começada de Deus.

Deus vos abençoe!

Pe. José Antonio Boareto

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